Início Sociedade Juízes de turno ainda não estão nas esquadras de polícia

Juízes de turno ainda não estão nas esquadras de polícia

por Redação

O jurista e professor universitário António Ventura admite que em Angola não existe um sistema de justiça totalmente reformulado, capaz de dar respostas assertivas à realidade política, social e económica vigente

Domingos Kinguari

António Ventura teceu estas considerações durante a conferência realizada pela Associação Mãos Livres sob o lema “A reforma da justiça e o combate à corrupção, do discurso à prática”, apontando expectativas, motivações e desafios da justiça angolana perante a nova realidade social, económica e política do país.

Com disse, «o tema implica vários desafios hermenêuticos olhando para três pressupostos: seria admitir que estamos, de jure e de factu, diante de um novo sistema judicial em Angola e, se admitirmos, então aceitaríamos que o sistema de justiça, comparativamente ao que vigorou no passado colonial, pós-independência e pós –transição democrática em Angola, já é completamente novo ou reformado», disse.

Continuando referiu que «o segundo pressuposto, seria admitir que, à luz do processo de construção do Estado de direito democrático, o poder judicial cumpre efectivamente com o seu duplo papel: a defesa do direito e dos direitos fundamentais, na nova realidade social, económica e política».

«O terceiro pressuposto, seria o de reconhecer ou não o impacto do contexto político pós –José Eduardo dos Santos, mas com o mesmo regime político, sobre o sector da justiça no contexto de crise económica e pandémica da Covid-19», realçou.

O académico esclareceu que «quanto ao primeiro pressuposto, não é de aceitar por duas razões, que explico: não é por qualificarmos ou adjectivamos o sistema judicial de novo, chamando-o de novo sistema de justiça, que admitiremos, de per si, que ele já é, de facto, novo ou reformulado. O novo supõe um processo de reforma já acabado, consolidado e reconhecido como tal, ainda que, nos seus elementos estruturantes», explicou.

«Parte da legislação estruturante que informa o sistema judicial angolano ainda era herdeira da legislatura colonial e do período monopartidário e sujeitas a algumas alterações e adaptações resultantes do contexto político, cultural e social, código civil, código de processo civil, código de contencioso administrativo, lei orgânica dos tribunais da relação… Todavia, hoje, a legislação estruturante já foi alterada e há progressos, mas ainda não atingiu a maturidade da sua implementação para falarmos já em nova realidade do sector da justiça», pontualizou.

Entretanto, «apesar desta nova realidade legislativa, a presença do juiz de turno nas esquadras ou comandos de polícia ainda não é uma realidade, o Ministério Público continua a instruir o processo sem fiscalização efectiva de um juiz de garantias e a aplicar medidas restritivas de liberdades em violação às garantias do processo penal previsto na Constituição».

Na sua óptica, há falta da lei orgânica dos tribunais da Relação da Huíla, Luanda e Benguela, para garantir o efectivo funcionamento dos referidos tribunais. «Em 2008, existiam 225 juízes e 154 magistrados do Ministério Público. Em 2015, o número de procuradores subiu para 196, entre os quais 112 homens e 84 mulheres; e para 318 juízes, entre os quais 198 homens e 120 mulheres. Actualmente, 578 magistrados judiciais, entre os quais 210 mulheres. A falta de advogados continua a ser também um outro obstáculo do acesso à defesa, por exemplo, até 2015, existiam em Angola 3.954, incluindo os estagiários e 3.222 advogados exercem a sua actividade somente em Luanda, deixando as outras províncias sem garantias efectivas de acesso à defesa», lembrou.

   «Existem províncias sem advogados residentes»

Em relação aos recursos humanos, «os principais actores do direito, advogados, juízes, procuradores, escrivãos, oficiais de diligência, são ainda insuficientes, sobretudo fora de Luanda. Inexistem os secretários judiciais nos termos da nova lei de organização dos tribunais, ainda existem províncias sem advogados residentes suficientes, outras só com um ou dois, o que afecta o direito à ampla defesa», disse.

«O aspecto quantitativo não é só o determinante, a formação qualificada/especializada também é determinante, sobretudo no domínio dos direitos e deveres de cidadania, incluindo um conjunto de valores/virtudes ético-republicanos de que devem possuir os operadores do direito e melhorar as suas condições salariais. Ainda há deficiências do número de oficiais de justiça e da qualidade das condições de trabalho, dignos salários, meios rolantes e de comunicação para evitar greves», alerta.

O antigo presidente da Associação Justiça Paz e Democracia, defende que «mais do que a formação técnica deve haver também concepção para justiça e para democracia participativa para o fomento da cultura do interesse e de serviços públicos, no respeito rigoroso pela lei e os procedimentos, na promoção dos direitos e deveres de cidadania, na honra, no mérito do trabalho e a dedicação à causa da justiça, como elemento estruturantes para promoção do bem comum/bem estar da sociedade da ética e da integridade no judiciário», disse.

«Só assim será possível diminuir e evitar, por exemplo, uma espécie de laxismo nos tribunais provinciais ou municipais e seus cartórios, atrasos propositados na tramitação administrativa dos processos, atrasos nas notificações, autoritarismos dos juízes, que impõem rigorosas multas aos advogados por atraso, mas, raras vezes, iniciam os julgamentos pontualmente, desrespeito aos causídicos, o suborno ou tráfico de influência sob forma de ‘gasosa’ ou ‘saldo’, ou ainda, a cada vez mais crescente tendência da ganância e avareza na magistratura do Ministério Público no contexto da recuperação de activos», enfatizou.                                        

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